21 de Abril do Ano Passado

21 de Abril do Ano Passado

A Chapter by Rafael Castellar das Neves

 

Oi doutor, boa-tarde, como tem passado?

Ah o senhor soube também? É, a coisa não foi nada bem. Soube há pouco pelo seu Mané, ele ligou no hospital e recebeu a notícia. É duro, doutor, perder um irmão já não é nada fácil, ainda mais este que estava com a gente havia bastante tempo. Coitado, sofreu bastante. Ai, ai... Muito triste doutor.

Não, não, ele não tinha nada até ontem à noite. Estava até que bem, fazendo piadas, rindo com a gente, ficamos sentados ali mesmo olhando o movimento e comentando dos outros que passavam, mas no comecinho da noite ele ficou mal. A gente já estava dormindo.

Não sei se foi a comida não, doutor. Comemos da mesma coisa: uma marmita que outro irmão ganhou naquela padaria do outro lado da Jabaquara. Dividimos todos nós com alguns outros restos, mas só esse irmão passou mal, por isso digo que acho que não foi a comida. Mas não dá pra saber o que foi.

Qual hospital? Se eu disser que sei, estarei mentindo, doutor. Na correria me esqueci de perguntar, acho que fiquei apavorado. O seu Mané que perguntou e pegou o telefone com o pessoal da ambulância. Ficamos passados. Essas coisas são difíceis porque não sabemos bem o que fazer a não ser gritar por ajuda. Não temos como levar ninguém para lugar algum e nem saber ao certo para onde levar, o que fazer, como proceder. E tem outra, né doutor, somos gente da rua e isso muda tudo. Às vezes que tentamos entrar num pronto socorro foi a maior dificuldade porque os seguranças nos põem para fora e quando não tem segurança, ficamos ignorados numa fila de espera do lado de fora que montam na hora apenas com a gente. Neste caso o seu Mané, esperto que é, não disse nada que era um de nós, disse apenas que era alguém na padaria, um cliente eu acho. Aí a ambulância chegou rapidinho, só assim mesmo. Não sei como eles não mandam direto um carro funerário quando sabem que é um de nós, um da rua. Enfim, o levaram para lá e não soubemos mais nada até agora a pouco, que foi quando o seu Mané conseguiu falar por lá, depois de tanto insistir. Não sei se estavam mesmo ocupados lá no hospital ou se estavam dando de ombros para o caso, prefiro pensar que estavam ocupados.

É, estou revoltado sim, doutor. O senhor me desculpe, mas é duro, não tem como não ficar inconformado. Nem digo pelo problema que o irmão teve, de repente era algo que não se podia fazer nada mesmo, mas vamos e venhamos, com a gente a coisa é diferente. A gente não tem família lá esperando, a gente não tem casa para sermos devolvidos, a gente não tem dinheiro para pagar o imposto que mantém as coisas por lá, nem documentos com nossos nomes a gente tem �" isso quando ainda temos nomes �", então não há porque gastar tempo e medicamentos com a gente, ninguém dará falta mesmo, e se der será por alguns dias apenas, nada demais, como se notassem uma pequena mudança na paisagem, que só aparece aos olhos delicados, mas logo foge à mente e a paisagem passa a ser, verdadeiramente, aquela, como se sempre assim fosse.

Que nada, não disseram nada, apenas confirmaram que ele morreu. O seu Mané insistiu, mas eles foram meio grossos, sabe? Ele disse que quando conseguiu que alguém o atendesse e voltasse ao telefone após ele explicar a situação, a resposta foi: “Ah sim, ele veio a óbito hoje de manhã, não havia nada que pudéssemos fazer, obrigado!”. O seu Mané insistiu perguntando o que havia se passado, qual era a causa da morte e outros detalhes, mas apenas recebeu um seco: “Causas desconhecidas, ele era morador de rua e vai saber com o que se metia.”.

Sério, doutor. O seu Mané ficou louco da vida, mas não havia muito que ele pudesse fazer, já tinha acontecido e é muito, mas muito raro um de nós voltar depois de entrar numa ambulância. Isso é até uma grande dificuldade que temos quando um dos irmãos passa mal, porque ficamos divididos entre chamar a ambulância para salvá-lo ou não fazer nada e torcer para que Deus dê um jeitinho e tudo se passe sozinho, sem uma ambulância que poderia levá-lo para o nunca mais.

Não sei doutor, é duro porque é difícil conseguirmos notícias, sabe? Uns dizem que os irmãos morrem, outros que vão para algum tipo de abrigo e que ficam melhores por lá. Até tento acreditar nisso, mas na hora do desespero, a gente realmente fica sem saber o que fazer, daí vem o pavor. Eu, sinceramente, nunca consegui conversar com algum que voltou. O máximo que tive foi alguma notícia como a daquele irmão que foi banhado por água quente. Os outros nunca mais viram, ouviram ou falaram. Essas coisas tiram o pouco de esperança e a fé que ainda a gente tem no coração. O coração agora bate apertado, e tenho de dizer: não só pelo irmão que perdeu a vida e talvez esteja numa melhor, mas porque amanhã pode ser a gente.

O seu Mané conseguiu ligar de novo no hospital e soube que ele será enterrado como indigente, porque não tinha nenhum documento ou alguém que confirmasse quem ele realmente era. Que coisa, não é doutor? O sujeito nasce de um pai e de uma mãe, ganha algum nome, passa uma vida desgraçada lutando para sobreviver e quando morre é jogado numa vala comum, feito um animal sem dono, sem cruz, sem foto, sem dizeres e sem encomenda da alma para o Senhor. Já pensou? Uma hora você tem trabalho, casa, família e de repente não tem mais nada, até a dignidade foi enfiada no rabo. Essa vida é uma grande merda mesmo, doutor!

Ah, doutor, desculpe! Mas o senhor deve saber: quando o coração está inquieto a boca não sabe o que faz. É que é tudo muito injusto, o homem tem direito ao menos a sua dignidade, mas nem isso fica, tudo é tirado da gente. Além da humilhação que a gente tem que conviver de sol a sol, a gente tem que passar por isso sem dignidade alguma, sendo tratados como ratos de esgoto que esgueiram os meios-fios atrás de um calcanhar para morder e a tudo infectar com nossas pestes.

É... Mas não há de ser nada, tudo bem, ele descansou desta vida. Deus é Pai e o acolherá junto a ele num lugar bonito e farto, tenho certeza disso, sim senhor, graças a Deus, graças a Deus, amém Senhor, amém Senhor, amém meu Pai.

Ah sim, então, ele estava bem ontem, aliás, esteve bem durante muito tempo, nem gripe ele havia pegado ultimamente. Durante o dia ele ficou por aqui, deu uma volta na praça para olhar o movimento, como sempre gostou de fazer, depois voltou antes da chuva e ficou por aqui sentado. Os outros irmãos chegaram e o último deles foi o que trouxe a marmita que falei para o senhor. A gente comeu junto, estava boa, viu? Quentinha e tinha uma carne bem gostosa, sim senhor! Aí a gente comeu, arrumamos as coisas para a noite e ficamos sentados, debaixo da lona que armamos durante a noite, para ver as pessoas que passavam, comentar sobre as coisas que aconteciam no cruzamento e a gente conversou um pouco. Estava tudo bem, nada de anormal. Resolvemos deitar.

Que horas? Devia ser umas nove horas, a padaria do seu Mané estava cheia de gente, afinal, sexta-feira o pessoal aproveita um pouco mais. Aí deitamos. Eu dormi logo e não vi que horas o resto dos irmãos dormiu, nem a que horas ele dormiu e se dormiu, mas eu dormi. Mas não dormi muito, deve ter se passado uma hora, uma hora e meia, não chegou a duas, e eu acordei ao perceber ele se debatendo. A gente tinha dormido um de pés virados para o outro. Do meu lado tinha outro irmão e do lado dele ninguém. Os outros estavam na outra parte da nossa barraca, de cabeças viradas para a minha. A gente faz umas distribuições meio diferentes lá debaixo para evitar que um fique com o pé do outro na cara, sabe como é, o irmão sonha e a gente que apanha, eh-he. Fora que a gente não tem muito como se manter limpo por aqui, então, o senhor imagina a situação dos nossos pés, é melhor deixá-los com outros pés. E foram os pés dele que me acordaram ao baterem-se sem parar aos meus. Achei até que fosse um sonho dele, ou que estivesse me acordando para ver alguma coisa que estivesse acontecendo e que valeria a pena para darmos algumas risadas. Mas eu estava com sono e resmunguei que deixasse para lá, pois eu queria dormir, mas ele não parou. Nem um segundo sequer, não parou e continuou a me amolar �" assim pensava eu, que ele estava me amolando para ver qualquer coisa �", então eu me sentei e quando olhei para ele, com minha vista ainda meio embaçada, percebi que não eram apenas os pés, mas o corpo todo estava se sacudindo violentamente. Parecia que todos os músculos dele estavam agindo por conta própria sem combinar com os outros: uns se contorciam, outros tremiam, outros espasmavam e outros permaneciam rígidos feitos pedras.

Isso, convulsão, essa é a palavra que procurava, parecia �" e devia ser �" uma convulsão. A cena era terrível, doutor. Quando me levantei para acudi-lo, já fui gritando para os outros irmãos. O que trouxe a marmita saiu correndo direto para a padaria do seu Mané atrás de ajuda. Os outros foram comigo acudir. Pensei que poderíamos segurar os braços e pernas dele, enquanto tentássemos acalmá-lo, mas que nada, não demos conta de segurá-lo. O que mais me assustou, depois de vê-lo se debater daquele jeito, foi quando cheguei perto da cabeça dele: ele estava sangrando por tudo que era buraco. Saia um sangue grosso e muito escuro, quase preto, do nariz dele. A boca estava trancada, espumando feito cachorro louco, só que era uma espuma amarelada e depois avermelhada, mas não sei se ele estava mordendo a própria língua ou se era o sangue do nariz que se misturava a ela. Saia o mesmo sangue escuro e grosso dos ouvidos dele, doutor, imagina só? Só que saia mais do que saia pelo nariz. E tudo isso sendo espirrado, se misturando, se esticando feito visgo, conforme ele se debatia. E os olhos, doutor? Meu Deus, os olhos dele não sangravam como as outras partes, mas dava para perceber que saia um pouco, como se fossem lágrimas, sabe? Mas, nos olhos, o sangue era o de menos, porque eles pareciam que estavam prontos para explodir! As pálpebras estavam esticadas e lutando muito para segurar os olhos que pareciam ser empurrados por alguma coisa de dentro para fora, terrível, terrível, doutor! E pior de tudo é que no meio de toda essa crise, com todo aquele sangue e músculos a se contorcer, dava para ouvi-lo gemendo e, doutor, não eram gemidos causados pelo ataque, como se os músculos da garganta e pulmões causassem aquilo, ele estava gemendo de dor, de medo, de desespero, como se pedisse ajuda, doutor! Sei disso!

Como? Só vendo mesmo, doutor, só estando lá e vendo, o senhor perceberia como eram os gemidos... E eles ficam dentro da minha cabeça, doutor, era muita dor que aquele pobre estava sentindo. Coitado, doutor! Que Deus o tenha do seu lado livre daquilo. Vai ver era como um momento final que Deus se demonstrou a ele para que ele passasse por aquilo e entrasse limpo no reino dos céus.

Ah sim! Não conseguimos fazer nada, tentávamos segurá-lo, mas não dava, doutor. Parecia um touro! São nestas horas que a gente vê realmente a força de um homem, não é? Dizem que é no desespero, na ausência de pensamentos que o corpo explode em pura força bruta. O senhor veja, doutor, ele não era um homem grande, pelo contrário, era magro e miúdo, mas a gente não deu conta não!

Tudo só parou quando ele mesmo não aguentou mais e apagou. Do nada, assim ó, como um estalo, ele apagou e amoleceu. Ele ficou esparramado, todo desmilinguido, com a cara na poça do próprio sangue grosso e escuro. Tentei acordá-lo com uns tapinhas na cara, mas nada, não acordou por nada. Mas respirava, e isso deixou a gente mais tranquilo �" ou menos preocupado, né? �" porque era como se a crise tivesse passado e ele só dormia cansado. Se não fosse toda aquela sangueira, deixaríamos daquele jeito mesmo, só esperar ele descansar, se recuperar e ver se tinha estragos; mas não dava para ignorar todo aquele sangue e os gemidos de dor que estavam dentro dele e agora estão na minha cabeça. Era como se ele estivesse preso dentro do próprio corpo, sofrendo, sendo atacado por algum demo... Nossa, será que era o demo que estava no corpo dele? Só agora pensei isso, doutor... não, não, Deus não deixaria, credo... Mas então, parecia que estava preso e querendo sair, como se os gemidos fossem gritos que ele não conseguia soltar. Então pensei que deveríamos chamar mesmo uma ambulância, talvez ele tivesse mais chance de ir para algum abrigo depois, pelo menos estaria bem. Mas nem deu tempo de eu pensar isso que falei e chegou o outro irmão correndo com o seu Mané logo atrás dele. O seu Mané ficou muito nervoso também quando viu todo aquele sangue e já foi logo nos acalmando dizendo que a ambulância estava chegando. Logo ouvimos a ambulância contornar a Praça da Árvore gritando feito louca. O seu Mané correu até lá para informar, de última hora, que o paciente estava ali debaixo da lona. Nossa, doutor, deu para ver na cara do motorista a decepção e irritação quando viu na verdade de quem se tratava. Mas os médicos, enfermeiros, não sei bem quem são, os que atenderam o irmão não pareciam se importar. Tem gente que faz o próprio trabalho com muito amor, não é, doutor? Eles faziam, sim senhor, nem se importaram e trataram dele do jeito que puderam. Deram algumas injeções, enfiaram um tubo na garganta dele e começaram a bombear ar com um balão, puseram uma bolsa de soro, na qual eles deram um monte de outras injeções. Acho que eram mais remédios, não eram?

É... Acho que sim. Bom, aí eles enrolaram uma capa metálica, parece que era para mantê-lo quente �" já estava meio gelado mesmo. Nessa correria, ouvi um médico dizendo para o outro que poderia ter tido algum problema dentro da cabeça. Isso me preocupou, mas um dos médicos veio conversar com a gente, enquanto terminavam de arrumá-lo, para saber o que tinha acontecido. E contei tudo isso que contei para o senhor. Enquanto eles colocaram o irmão na ambulância, o seu Mané conversou com o motorista para saber para onde iam. Aí eles ligaram a sirene e saíram com tudo. Só depois que a ambulância foi embora que ele me contou que não tinha dito para quem era.

Isso mesmo, doutor, ninguém dormiu mais depois disso. E sabe, acho que nem o seu Mané. Ficou na padaria e logo a fechou, mas de madrugada eu vi que tinha luz acesa na casa dele e, vez ou outra, via o vulto dele passando de um lado para o outro.

E foi isso, doutor! Notícias mesmo só agora há pouco, como falei para o senhor. Só peço a Deus que o receba em seu rebanho e dê o conforto que ele merece. Do mais, vamos tocando por aqui.

É sim... Fica a tristeza, a saudade do companheiro, mas não podemos deixar a peteca cair, a gente tem de continuar; senão a gente vai também, rapidinho. A gente tem que continuar porque não é fácil com as coisas nos lugares, assim, então, fica pior ainda. Somos menos um agora doutor, uns ficam satisfeitos com isso, não é?

É sim, doutor... O senhor sabe que é assim que funciona. Mas outros, como nós, o senhor, o seu Mané e o Cidão, vão sentir. E o senhor vai ver �" isso funciona para nós também �" vai ser rapidinho, logo nem sentiremos e nem falaremos mais disso, sim senhor. Na melhor das situações, doutor, a gente é número nesta vida, no nosso caso, nem número a gente pode ser. Essa é a vida, doutor, nela nada fica e dela nada se leva.

 

É... Nadinha... Nadinha...

 

Vá com Deus, meu irmão!

 

Ah sim, doutor, estamos bem sim, pode ficar despreocupado. Estaremos por aqui, existindo. Sim senhor, pode deixar que aviso sim, muito obrigado, doutor. E desculpe aborrecê-lo com toda esta história, mas agradeço ao senhor, me sinto até mais leve depois de conversar com o senhor.

Até mais ver, doutor!

 



© 2015 Rafael Castellar das Neves


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Added on December 4, 2015
Last Updated on December 4, 2015


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Rafael Castellar das Neves
Rafael Castellar das Neves

Sao Paulo, Sudeste, Brazil



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Nascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..

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