18 de Novembro do Ano Passado

18 de Novembro do Ano Passado

A Chapter by Rafael Castellar das Neves

 

Oh, doutor! O senhor não morre mais! Que bom que o senhor apareceu, eu estava querendo falar com o senhor mesmo, agorinha mesmo falei com o seu Mané que iria tentar achar o senhor.

Sabe o que é, doutor?

 

Eh-he! É verdade, doutor, o senhor me desculpe. Estou meio agitado hoje. Pronto, já acalmei, eh-he!

 

Então, doutor, é que eu queria ver com o senhor, se o senhor não tem, lá na sua casa, uns sacos de lixo, daqueles bem grandes e grossos, sabe? É que seu Mané está sem nenhum e o Cidão está de folga hoje, então nem tem como pedir para ele ir buscar no mercado, porque o mercadinho do japonês aqui do lado não tem mais. Aí, pensei no senhor, que de repente podia ter em casa.

Ah, não tem? Não tem problema não, doutor, a gente se vira aqui.

Não, doutor, que buscar no mercado o quê! Não tem problema não, é sério, fique tranquilo.

É mesmo, doutor? O senhor tem certeza? Eu não quero atrapalhar, nem dar gasto para o senhor, era só um favor mesmo. Mas se não tem problema, eu vou aceitar, doutor, e já aceito muito agradecido, viu? Muito obrigado!

Ah, sim, doutor! Estamos precisando destes sacos para colocar as coisas da gente, coisas que a gente tem que guardar e não dá para deixar para trás.

Eita! Deixe-me explicar, pois vejo pela cara do senhor que o senhor não sabe: a gente está de partida, doutor!

Ah, doutor, é complicado, mas é porque deram parte da gente na prefeitura da região, e segunda-feira, pelo que falaram, eles vêm para nos levar. Então já estamos ajeitando nossas coisas. Ainda temos tempo, hoje ainda é quarta-feira, não é? Então! Dá tempo de arrumar as coisas e ir para algum outro lugar e se ajeitar de novo.

Mas confesso para o senhor que daqui eu vou sentir falta. Os irmãos também, eles estão um pouco chateados também, gostam daqui. Não é só o lugar que é bom, porque aqui a gente não tem problema de enchentes, não tem tanto vento e tinha esse abrigo largo aqui para a gente se ajeitar à noite. Fora o movimento que é bem divertido e diferente. Mas é também por causa das pessoas, tivemos tanta ajuda aqui, doutor. Do seu Mané, da mulher dele, do Cidão, da dona Mercedes, do senhor... Vocês são pessoas de ouro que Deus colocou na vida da gente como um presente não merecido. A gente agradece muito a ele por isso.

 

Não, doutor, não se zangue nem se aborreça. As coisas são assim mesmo! Sempre foram e sempre vão ser. Ainda que desta vez a gente pôde saber antes e temos tempo para nos arrumar. Outras vezes foram mais difíceis, porque a gente foi pego de surpresa e acabamos perdendo um bocado das nossas coisas, aí já viu, né? Mas não há de ser nada, doutor, como eu disse, a gente tem é que agradecer. Ficamos aqui mais tempo do que ficamos em qualquer outro lugar e aqui, o senhor pode ter toda certeza deste mundo, foi o lugar que melhor fomos tratados e que melhor nos sentimos abrigados, sim senhor! E por essas e outras que lhe digo que vamos sentir falta, mas temos que continuar e não adianta a gente reclamar, esbravejar ou ficar bravo; essa é a nossa condição, nossa realidade, doutor, somos gente da rua, gente sem casa, gente sem sobrenome, gente sem rosto. A gente vive de um lugar para o outro, a gente não tem lugar fixo, não tem abrigo garantido e a gente tem tanto medo do frio quanto da fome. A gente vive dia após dia, um de cada vez, doutor, não como se fosse o último, mas torcendo e fazendo o que dá para que não seja. A gente não consegue planejar muita coisa que não esteja a oito horas de distância. A gente só não faz besteira porque temos fé de logo endoidar e perder a noção desta realidade, a gente reza pra isso todos os dias; mas sabemos que não acontecerá enquanto não pagarmos tudo que devemos, doutor, é assim que a coisa funciona. A gente vai caminhando, dia após dia, até que chegue nossa hora... Mas a gente estará junto, doutor, e isso nos mantêm firmes. Junto, a gente é gente com família, eh-he, sim senhor, eh-he, gente com família, família de irmãos!

E tudo gente boa, viu doutor? Gente muito boa! Já fomos mais, já fomos outros, mas com o tempo, só foram ficando os que são do jeito da gente, que pensam parecido, e já sabemos mais ou menos o jeito do outro. Todo mundo aqui se respeita, divide as coisas, ajuda um ao outro e onde um for, o resto vai atrás. Isso é uma benção, doutor, já vivemos com cada um, com cada tranqueira que só fez enganar a gente, colocar a gente em situação complicada, Deus me livre! Mas agora estamos em turma boa, e isso o senhor já sabe de tanto que já devo ter falado, mas é que fico contente quando olho para eles. É como se Deus tivesse mandado uma ajudazinha para passar um pouco melhor por toda essa provação nossa. Agradeço por isso, doutor, assim como agradeço ao novo dia que se começa. Já maldisse os dias, doutor, época que queria dormir e nunca mais acordar, época muito difícil. A doideira não vinha, os dias eram longos, a doença não largava e estava sozinho no meio de tantos sem-vergonha. Sim, senhor, sem-vergonha! Era como se tudo que tivesse que ser errado estivesse sendo, estivesse acontecendo bem comigo, doutor, e eu quis tanto, rezei tanto para Deus me levar, ou pelo menos me dar a loucura... Mas, o senhor sabe doutor, eu tinha que passar por tudo aquilo... O que eu fiz... É, o que eu fiz... Tenho que pagar, doutor, é até errado da minha parte pedir ao contrário. Mas mesmo assim Deus mandou esses irmãos que tenho aí hoje, nos mandou também para um lugar bom como esse e agora nos manda para outro lugar, para outra vida. É assim, mesmo, Deus tem lá seus planos. Então, doutor, eu parei de reclamar por amanhecer e passei a agradecer. Passei a sorrir ao abrir os olhos e me encontrar vivo entre os irmãos! Assim a gente vai caminhando, doutor, tocando em frente, como diz a música, eh-he.

 

Oh, doutor, o senhor não precisa ficar desse jeito não! É coisa nova para o senhor, mas não para nós. A única diferença é que dessa vez a gente ficou mais tempo e cercado de gente boa! Mas uma hora a gente teria que ir mesmo, ou o senhor pensou que ficaríamos vagando por aqui e nos abrigando ali na autoescola para sempre? Claro que uma hora ou outra chegaria o momento de a gente ter que ir embora. E ainda que desta vez está bem tranquilo. Muitas vezes, doutor, fomos embora porque a coisa estava feia, outras fomos excomungados, outras fomos também roubados, e outras até apanhamos. Não há de ser nada, doutor, o senhor se assossegue!

A vida é assim, e o senhor já deve saber, hora um vai, hora outro vem, e vão ficando as recordações. E, olha doutor, todas recordações ficam. Uns falam que só ficam as boas e que a gente esquece as ruins, mas não é nada disso: todas as recordações ficam! O que acontece é que a gente prefere as boas, mas as ruins, hora ou outra vêm para cima da gente trazendo tudo que é de ruim junto. Mexe com a gente! Agora, se essas ruins ficam, o senhor imagina as boas? E eu tenho um monte de recordações boas que vou levar daqui, doutor. Tenho certeza que os irmãos também. E é isso que vale a pena! A vida é rápida demais e dela a gente não leva nada, mas também dela as únicas coisas que não podem ser tiradas são as recordações, por isso, doutor, a gente tem que aproveitar tudinho para que não fique nada para trás que faça a gente se arrepender. E a gente tem que manter na cabeça que a cada esquina, a cada rua nova, a cada porta que passamos, há muitas coisas para serem aproveitadas e guardadas como recordações! E a gente torce para que sejam das boas, não é? Eh-he, pois é sim, a gente só quer as boas; mas tem hora que não tem jeito, isso é certo.

Mas também, doutor, o senhor veja: haveria paz sem guerra, haveria amor sem a raiva, haveria o bem sem o mal? Tudo nessa vida, doutor, e isso a gente só aprende com o tempo, e digo que é essa a verdadeira inteligência, esse é o verdadeiro envelhecer que só aprende quem consegue entender que tudo tem que ser dosado, que tudo que é demasiado não faz bem, é o equilíbrio que vemos brilhar no olhar e no sorriso dos nossos velhinhos. E justamente por isso, doutor, por esse equilíbrio, esse constante acertar que vem com a idade é que dá a certeza de tantos erros passados cometidos. Ninguém fica sábio por nascer sabendo ou porque um dia encontra a luz da sabedoria, mas porque resolveu aprender com os tantos momentos difíceis que a vida lhe deu. Parece até injusto, não é doutor? Mas é assim que funciona na vida... Sim senhor, é plano de Deus, é plano de Deus... Amém, assim seja, amém.

 

Que é isso, doutor, isso não é sabedoria não. Talvez um dia, quem sabe, mas ainda não. Na verdade, isso eu lhe confidencio, é ignorância!

Eh-he, eu já imaginava que o senhor iria estranhar, sim senhor, eh-he... Mas é ignorância sim, doutor, e esse, o senhor pode acreditar, é o melhor remédio que a gente tem para viver a vida que vivemos.

O que quero dizer, doutor, não é que a gente seja ignorante. É claro que a gente é em quase todas as ciências, inclusive no falar. Muitos nem ler e escrever sabem, estão na rua desde o berço ou estão justamente por não saber. Nestes pontos, a gente realmente é ignorante. Mas a ignorância que falo para o senhor não é uma ignorância natural, é uma ignorância proposital, uma ignorância que a gente acaba decidindo por ter.

O senhor consegue imaginar como é viver constantemente com a falta de comida? A gente vive como bicho do mato, lutando dia a dia por comida, lutando por migalhas e restos que nos dão ou encontramos no lixo. E é essa uma luta que na maioria das vezes a gente perde. E a gente perde não porque não sabemos caçar, mas porque nos falta a caça.

O senhor consegue imaginar como é viver perambulando pelas ruas sem ter um lugar da gente que se possa chamar de “lar”? Muitos de nós nunca nem soube o que é isso. Durante o dia, a gente anda por aí, procurando cantos em que a gente atrapalhe o menos possível a vida das pessoas normais! E, ainda, a gente tem que arrumar lugar para amontoar tudo o que é nosso, toda a nossa “mobília”. O que dá para carregar, a gente carrega. O resto, a gente amontoa e torce para estar lá quando a gente voltar. A gente não tem nem parede para nos proteger do frio, da chuva e da vista dos outros. Há muitos anos que a gente não sabe nem o que é intimidade. Não temos uma privada, sequer, para nos aliviar das coisas do corpo.

O senhor consegue imaginar como é viver de favores dos outros, da boa vontade de pessoas iluminadas que Deus põe na nossa vida? A gente não tem nem a dignidade de se manter, de conquistar a própria comida pelo próprio mérito. A gente espera, a gente reza e a gente pede. Aliás, a gente implora e ganha pela piedade das pessoas, doutor. A gente não sabe o que é o semblante do dever cumprido, porque a gente nem dever tem. A gente incomoda, doutor, e muitas das vezes que ganhamos alguma coisa é para que pare o incômodo que causamos com apenas nossa presença, nosso cheiro. A gente assusta os outros! A gente é motivo para as pessoas mudarem de calçada. A gente é motivo para as pessoas olharem para outras coisas que não interessam, apenas para fingir que não nos viram. Quando a gente tem dinheiro, doutor, não adianta muito, porque ninguém quer que a gente entre no seu comércio. Veja o senhor, doutor, não temos nada e quando temos um dinheirinho, não podemos entrar num restaurante para comer, porque incomodamos! Chega a ser engraçado.

O senhor consegue imaginar como é viver na sujeira, sem nem lembrar mais qual é a cor da própria pele? A gente não tem como tomar banho todos os dias, nem todas as semanas. Banho, quando tem, é na chuva, é na mangueira da dona Mercedes, é em alguma fonte à noite, mas nunca é banho quente, nunca é banho com sabão, nunca é banho com bucha, nunca é banho direito. A gente vive encardido, de cabelo cumprido, de barba cumprida, de unhas cumpridas e sujas. A gente não tem banheiro para se aliviar. A gente tem que andar por aí, procurando um lugarzinho na rua para pode fazer as necessidades, e a gente nem tem como se limpar, doutor! Muitas vezes a gente tem que sair correndo fugido, de calça arriada no meio da obra, debaixo de xingamentos e vergonha. A gente tem piolho, tem sarna e vai saber mais o quê. A gente tem doenças que nem sabe. Olha essa ferida na minha perna, doutor. Ela tá aberta e vazando já deve ter mais de ano, e como é que vou curar? Ainda bem que ainda não tem bicheira nela, já pensou quando pegar, ser comido vivo por uma bicheira? A gente cheira mal, doutor, e isso o senhor já sabe. A gente cheira gente, bicho-homem, não perfume!

O senhor consegue imaginar o que é viver sozinho? Não digo isso da vida de hoje, o senhor sabe, mas de momentos que já passamos. Sabe o que é se sentir sozinho bem no meio de uma cidade como esta, doutor? Eu até achava que sabia o que era solidão, mas descobri que o que eu sabia não chegava nem perto do que é a verdadeira solidão. O senhor sabe o que é se sentir sozinho em plena Praça da Sé em uma segunda-feira de manhã? Pois esta é a pior das solidões, doutor, a solidão de vida na vida. Esta ausência no meio de tantos. É a solidão por ser ignorado, por ser colocado de lado. Nem bicho é ignorado. E isso dói, doutor, dói muito. É uma dor diferente, é uma dor que embrulha o estômago da gente, engasga a garganta da gente, e a gente não pode fazer nada, senão aguentar e aceitar que é assim mesmo. Doutor, o senhor sabe o que é esquecer como é a sua própria voz?

O senhor consegue imaginar como é viver sem um carinho, um cafuné? Nem estou falando de amor, doutor. Estou falando de um simples olhar puro, com aquele sorriso de quem se alegra simplesmente pela nossa existência. Pelo contrário, nossa existência gera outros tipos de expressões. A gente tem sim o companheirismo entre a gente mesmo, o do senhor, o do seu Mané, do Cidão, da dona Mercedes, das pessoas que nos ajudam de verdade. Sabe, doutor, a gente não tem mulher! Uns ainda conseguem alguma coisa em outra turma, outros conseguem com umas loucas que também moram na rua, umas coitadas que nem sabem o que estão fazendo, mas o senhor sabe como é a vontade, a carne, né doutor? A gente tem nossas vontades, e mulher faz falta na vida de um homem, doutor. Como faz! E não falo isso só porque é bom, mas porque sexo faz a gente se sentir vivo, se sentir gente e dá uma alegria danada, eh-he!

 

É... Que coisa, né?

Hum... Sim, senhor... Dureza, dureza! Fácil não... É... Fácil não...

Mas é a vida, eh-he, eita que vida!

 

Ah, doutor, o senhor me desculpe por toda essa falação. Que coisa! Desculpe despejar tudo isso no ouvido do senhor. Sabe, não estou reclamando não, estou apenas explicando para o senhor o verdadeiro motivo de escolhermos essa ignorância. Acho que esses minutos de clareza, sem ignorância, já foram suficiente para o senhor ver o que a falta dela pode causar na vida de um homem. É por isso, doutor, é por isso que a gente escolhe, e tem de escolher, essa ignorância. É como dizia num livro que li, e hoje entendo direito: “Ignorância é força!”.

Talvez esta ignorância atrase um pouco mais a loucura que tanto a gente procura, pela qual a gente tanto reza; mas pelo menos diminui a dor dessa realidade. É aquele negócio, doutor, aquele de desligar o cérebro, lembra? Então, é bem isso.

E tem outro lado, doutor, que é o que mais nos prende nesta situação e que irmão nenhum quer perder: a liberdade! Por mais difícil que seja nossa situação, ninguém neste mundo tem esta liberdade que a gente tem, por melhor que seja a vida. A gente é livre! E o senhor acredite, é uma liberdade que não dá para explicar, só quem a tem sabe, mas para tê-la, o senhor já viu o que é preciso, eh-he.

 

Mas o senhor me desculpe mesmo com essa história toda, doutor. Cada um tem aquilo que merece, aquilo que planta. Isso não tem nada a ver com o senhor e o senhor não tem nada que ouvir e ficar pensando nessas coisas, não há de ser nada, Deus sabe o que faz!

 

Bom, vamos tocar a vida, doutor! Vá fazer suas coisas que já perdeu tempo demais com bobagens hoje, eh-he, sim senhor.

Sim, estarei por aqui sim, doutor, mas se não estiver quando o senhor voltar, pode deixar os sacos com qualquer um dos irmãos ou mesmo com o Cidão.

Sem problema, doutor, muito obrigado, viu? O senhor é um homem muito bom, que Deus conserve o senhor assim e permita que senhor ganhe tudo isso em dobro! Muito obrigado, doutor! Até mais ver.

Amém, fique com Ele o senhor também, sim senhor, amém!




© 2015 Rafael Castellar das Neves


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Added on December 4, 2015
Last Updated on December 4, 2015


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Rafael Castellar das Neves
Rafael Castellar das Neves

Sao Paulo, Sudeste, Brazil



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Nascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..

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