24 de Dezembro do Ano Passado

24 de Dezembro do Ano Passado

A Chapter by Rafael Castellar das Neves

 

Chegamos, irmão?

Ah, é um bom lugar sim, tem até um ventinho fresco que cai bem com esse calor danado. Vem da serra, não vem?

Aqui já é São Bernardo?

Não? Mas estamos perto, não estamos?

É, achei que sim mesmo. Olha lá, da para ver a Imigrantes! Ave, como está cheia! O pessoal está indo passar o Natal na praia, será que vão chegar a tempo? O sol já está bastante baixo. Acho que vão é passar o natal na estrada, isso sim! Que coisa, né?

Mas é bem bonita esta vista: o céu laranja, o sol baixando forte atrás dos prédios... Muito bonito mesmo, sim senhor.

 

Desculpa do que, irmão?

Ah, não tem do que se desculpar. A gente sabe que as coisas são assim. Esse lugar perto do Zoológico até que era bom mesmo, você tinha razão; mas como a gente ia saber que ia ter aquele pessoal nervoso lá?

É, estavam bravos mesmo, tocaram a gente na mesma hora que nos viram, eh-he! Mas não há de ser nada não, irmão, fique tranquilo, é assim mesmo, a gente já sabia... Mas olha agora, que lugar gostoso e sossegado que a gente está! Vamos passar a noite aqui e amanhã, se Deus quiser, a gente pensa no que fazer. Amanhã é dia de Natal e você sabe como é: as latas estarão cheias de coisas boas para a gente, eh-he! Quem sabe a gente consegue até um pedaço bom de pernil, não é? Hum, um pernil cairia muito bem, não acha? Se Deus quiser acharemos um amanhã...

 

Olha, fiquei com o pernil na cabeça! Aliás, acho que na boca, isso sim, eh-he, encheu de água.

É, gosto muito de pernil sim. A falecida minha mãe, que Deus a tenha ao seu lado, fazia um pernil que não tinha para ninguém. Ela passava todo o dia da véspera de Natal cuidando da cozinha, mas principalmente do pernil. Carne de porco era o forte dela, tinha uma mão muito boa para o tempero. Assava direitinho, a carne não ficava nem crua e nem seca, sabe? Ela deixava no ponto!

À noite, costumávamos ir para casa dela para ceia de Natal. Sempre foi assim desde criança e continuou sendo depois que casei. Meu irmão também sempre ia. Só minha irmã que passava o Natal com os sogros dela e o Ano Novo com a gente. E para não dar briga, meus sogros e os do meu irmão passavam o Natal com a gente também. Mais alguns tios e amigos da família, e a casa ficava cheia. Minha mãe, por causa da correria, ficava muito irritada e vermelha, eh-he. Todo o mundo tentava evitá-la; senão já viu, eh-he, italiana, sabe como é. Mas era quando ela voltava da Missa do Galo, colocava a mesa e todo mundo fazia a oração, que ela se acalmava e tinha, então, o seu grande momento: todo mundo se deliciando com a ceia que ela havia preparado. A oração era feita pelo meu pai, mas depois que ele morreu, meu irmão passou a fazê-la. Ele era o mais velho e eu apenas um menino. Mas também nunca fiz questão de fazer a oração, nunca achei que eu era bom para fazer orações em público e meu irmão fazia tão bem quanto meu velho!

Mas ela não servia o pernil junto com toda a comida. Ela deixava para depois, para o seu momento. A gente começava a comer e depois de alguns minutos, quando ela tinha certeza que todo mundo já estava comendo, ela trazia, orgulhosa com um sorriso lindo no rosto, a travessa com o pernil ainda soltando fumaça. Era uma cena muito bonita, sabe? Ela ficava muito contente neste momento e, principalmente, quando via a satisfação no rosto de todo mundo.

Comíamos e comíamos e comíamos! Depois brincávamos de amigo secreto, trocávamos presentes e conversávamos até altas horas. E você pensa que ela ia cedo dormir? Que nada! Ainda arrumava quase tudo e ajudava a colocar as crianças para dormir. Minha mãe era uma mulher muito forte, sofreu bastante, mas nunca a vi fraquejar. Ficou viúva cedo e terminou de criar os filhos sozinha.

O Natal sempre foi uma data muito importante na minha família. Meus pais cumpriam todos os rituais religiosos e festivos à risca. Minha mãe não permitiu que nada mudasse depois que meu pai morreu. Acho que era na noite de Natal em que ela se sentia mais próxima dele. Dava para perceber as mudanças nela já no começo do mês. Algumas vezes a vi no quintal, enquanto a comida estava no fogão, andando a passos curtos e com os olhos vermelhos.

As noites de Natal sempre foram muito agradáveis lá em casa. Quer dizer, fora uma noite, em que eu já estava perdido e, pra variar, enchi a cara, estraguei tudo e vi, pela primeira vez, minha mãe chorando. Sei que não chorava pelas condições que estava minha vida �" mesmo porque isso sempre foi encarado como vagabundice minha, por toda família �", mas pelo fracasso de todo o seu trabalho para a tão esperada noite de Natal. Aquela foi a última em que participei, depois disso, a coisa piorou. Minha mãe adoeceu neste meio tempo e em dois meses morreu. Foi muito rápido

 

É... Não é fácil, não!

Mas era muito bom. Ainda consigo ver claramente a cena: toda mesa colocada, todo mundo reunido com rostos felizes comendo, bebendo e se divertindo. Minhas crianças comendo rapidinho para voltarem a correr e brincar com as outras crianças. Minha mulher toda produzida, sentada ao lado da minha mãe, conversando como se fosse a dela, sorrindo. Minha mãe orgulhosa e, ao mesmo tempo, com um olhar saudoso. Um olhar lindo! Minha mãe tinha um olhar lindo! Parece que estou vendo as duas mulheres da minha vida, agorinha na minha frente, sorrindo pra mim enquanto eu como meu pernil, eh-he.

Por isso, irmão, que gosto tanto de um pernil. Traz-me lembranças muito boas, de um tempo em que havia muita alegria, as dificuldades eram outras, mas a gente estava sempre unido. Um ajudando o outro... Que coisa boa, tempo bom que não volta mais...

 

É... Tudo passa nesta vida. A gente tem é que cuidar sempre; senão a gente fica sem... Meu pai estava certo... É...

 

Não é mãe?

A senhora está muito bonita!

Está se superando com este pernil, hein?

Sim, mãe, está melhor do que nunca, eh-he! Você não acha, amor?

Está vendo mãe, não estou falando da boca para fora!

 

Amor, as crianças não querem comer mais?

Ah, então deixe elas brincarem, estão se divertindo com os primos, eh-he!

Também te amo!

 

Mãe, me passa o arroz, por favor! Isso! Obrigado!

O senhor aceita pernil, doutor? Está uma delícia, minha mãe quem fez! Aqui está, fique à vontade. Passe para a patroa também.

 

Pai, será que vamos chegar a tempo à praia? A estrada está muito cheia, está vendo? Será que não é melhor voltarmos? Se nos atrasarmos para a ceia a mãe vai ficar muito brava!

 

Amanhã o senhor me leva para jogar bola?

Oba! Posso levar a bola nova de capotão que ganhei?



© 2015 Rafael Castellar das Neves


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Added on December 4, 2015
Last Updated on December 4, 2015


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Rafael Castellar das Neves
Rafael Castellar das Neves

Sao Paulo, Sudeste, Brazil



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Nascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..

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