07 de Outubro do Ano Passado

07 de Outubro do Ano Passado

A Chapter by Rafael Castellar das Neves

Oh, doutor! Não tinha percebido o senhor aí, eh-he, me desculpe!

É... Estava distraído sim. O senhor está vendo aquela família ali debaixo do abrigo do bingo? Acho que chegaram ontem, não sei ao certo, só sei que logo alguém tira eles dali, com certeza.

Por quê? Ah, doutor, o senhor sabe como é, ali ninguém quer gente morando, mesmo que o bingo esteja interditado pela prefeitura. É a sujeira, doutor, sujeira das necessidades, da imagem, sabe? É assim que essas coisas funcionam. Ainda mais porque com família grande assim, não dá para ficar procurando lugar durante o dia e voltar só para dormir, têm crianças. Está vendo ali, naquele montinho? Eu contei umas três cabecinhas. Os corpinhos devem estar todos enroladinhos uns aos outros para se esquentarem. Que judiação, doutor. Isso me corta o coração, sabe? Para a gente que já é grande, já não é fácil, para criança então, nem me fale. Bacurizinhos passando fome, frio e sem viver como criança... Ah, doutor, isso devia ser proibido por Deus... Ele que me perdoe, mas penso assim. Criança devia ser proibida de passar necessidades, de ficar doente e de serem enterradas pelos pais, sim senhor!

Mas o senhor pode escrever: logo vem alguém e os leva para algum lugar longe, onde fiquem fora da visão, fora da paisagem, se é que o senhor me entende. Como eu disse para o senhor noutro dia: nem sei como é que estamos durando tanto aqui ainda.

Olha lá, doutor, olha! Está vendo a menininha? Ah, doutor, isso lá é vida de criança? Olha, olha, doutor! Tadinha, acabou de acordar e tem que se arquear em cima de um baldezinho, levantar o vestidinho sujo, na frente de todo mundo, para fazer o primeiro xixizinho do dia. Ah, Senhor, tende piedade!

É... Emocionei sim, doutor... Numa manhã de domingo dessa, bonita, com o sol branquinho e céu azul, a estas horas, eu já estava com as crianças brincando no parquinho. E olhar estas crianças ali, passando o que estão passando, me deixa assim, triste por elas e meio saudoso também. O senhor é pai e sabe do que estou falando.

É, eu sei, também fui pai sim doutor. Pai de um casal lindo de crianças. Mas isso já faz muito tempo, eles já devem estar grandes, se Deus quiser e ele há de querer!

Eh-he, eu explico, doutor, eu explico.

Que nada, doutor, não tem do que se desculpar, imagina! É que eu começo a falar e não paro, e não quero tomar mais o tempo do senhor.

Eu não vivi minha vida inteira nesta situação que estou hoje não. Eu também não nasci em berço de ouro, mas consegui construir minhas coisas. Consegui ter um pouco de estudo e, graças a Deus, muita saúde para trabalhar. E trabalhei, doutor, como trabalhei nesta vida! De tudo fiz um pouco, e de pouco em pouco fui construindo minha vida. Ainda era moço quando conheci a mãe dos meus filhos. Foi uma coisa muito bonita, sabe? Daquelas paixões à primeira vista? Ela era tão bonita, doutor! Coisa de televisão. Lembro direitinho de quando nos conhecemos. Ela era secretária em uma firma de transporte em que eu era encarregado. Começamos a sair, depois a coisa foi acontecendo, namoramos, juntamos um dinheirinho e demos entrada na nossa casinha. Acho que uns seis anos de namoro foram suficientes para nos casarmos. Foi um casamento simples, mas muito bonito e com toda família e amigos... Ela estava tão bonita! Ela tinha um sorriso que nenhuma mulher tem neste mundo, era o sorriso mais lindo que já vi e que me dava uma calma tão grande! Fui muito feliz ao lado dela, doutor. Ela era muito amiga, parceira, sabe? Tinha uma cabeça que era só inteligência. Eu agradecia a Deus por cada dia que eu tinha ela em minha vida, por cada noite ao seu lado e por poder ter aquele sorriso em meus dias. Na verdade, ainda agradeço, pois aquela foi a fase mais linda da minha vida, a melhor de todas...

Então, depois de dois anos de casados, ela engravidou e deu o primeiro melhor presente da minha vida: a minha menina! Era minha cara, doutor, a coisinha mais fofa e meiga que já existiu nesta terra de meu Deus. Risonha feita a mãe, mas com meus traços. Até o jeito dela era igual ao meu. Todo mundo que a via ficava doido por ela. Não tinha quem não a olhasse na rua, quem não parasse na padaria para mexer com ela e admirar os grandes olhos azuis que ela tinha. E era estudiosa que só, nossa, como estudava. Tinha dias que eu queria que ela parasse de estudar tanto, eh-he, imagina só!

Aí, mais três anos depois que ela nasceu, eu já devia ter mais ou menos a idade do senhor, veio o segundo melhor presente da minha vida: o meu menino! Eita que menino danado de esperto, doutor! Sabe aqueles meninos moleques mesmo? Ele era assim. Não dava trabalho, não aprontava nada grave, mas gostava de uma arte, eh-he. Ah, e corria atrás de uma bola como ninguém. Deu um trabalho danado convencê-lo a estudar e não ficar só atrás de bola. De repente ele até podia ser um jogador de futebol famoso, mas na dúvida, tínhamos que garantir os estudos dele. E não é que ele também ia bem nos estudos? Mas na aula mesmo ele não prestava muito atenção. Fugia de estudar e de fazer as lições de casa, mas vinham os boletins com ótimas notas, nunca repetiu nem fez recuperação. Mas sempre éramos chamados na escola para ouvir reclamações que ele conversava muito, não queria prestar atenção e tumultuava as aulas com brincadeiras; e quando chegavam os boletins, o danado vinha com notas boas, eh-he, puxou a mãe!

E vivemos um tempão assim, doutor. Eu e a mãe deles trabalhando bastante e duro para dar estudo e boas condições para eles e sempre conseguimos. A última vez que vi minha menina, ela estava para se formar dentista, já pensou? E agora eu com os dentes todos caindo, eh-he!

O dinheiro não era muito, mas dava para os estudos, para manter um lar confortável, sem faltar comida e nem remédio. Podíamos viajar vez ou outra, principalmente para a casa dos meus sogros. E que gente boa eram eles, viu? O senhor ia gostar de conhecê-los, tenho certeza. Éramos felizes doutor, ela era uma boa mãe, uma boa esposa e eu também era um bom pai e um bom marido...

Mas tudo desandou, doutor, tudo foi por água abaixo, estraguei tudo!

Eu não sei dizer para o senhor certinho quando é que foi, sabe, eu não tenho mais a memória boa, eh-he. Mas eu lembro que era julho daquele ano, fez muito, mas muito frio mesmo. Foi terrível! Uns parentes perderam quase toda plantação de couve por causa das geadas. Foi um frio forte e o tempo estava muito seco, aí já viu, o frio corta a gente.

E foi esse frio que pegou meu menino, doutor. Ele começou com uma tossezinha, eh-he, até sei no que o senhor está pensando, e o senhor pensa certo, ele ficou muito ruim mesmo. Foi uma pneumonia muito forte que assustou até o médico dele. O coitadinho ficou muito mal, todo molinho, tossindo, fungando e soltando aquela catarreira. É duro, doutor, ver um filho seu numa situação daquela. Ver aquela coisinha que é maior que a nossa própria vida, toda fraquinha. Dá um nó na garganta da gente, uma fraquejada, uma sensação de incompetência, sabe? É triste, doutor, muito triste! O senhor é pai, o senhor sabe.

Então, o menino ficou muito ruizinho e eu reagi de um jeito estranho. Acho que foi a sensação de fracasso, mas eu comecei a andar para trás, sabe? Hoje eu percebo que foi aí que começou, mas na ocasião nem parecia que estava acontecendo alguma coisa. Achava que era só preocupação. E o menino foi piorando, piorando até que o médico dele o desacreditou. Sabe o que é ouvir do médico que o seu filho não vai mais viver, doutor? Sabe o que é olhar para sua mulher e ter que aguentar firme vendo ela se desmanchar em lágrimas? Sabe o que é ter uma vida toda com ele passando pela sua cabeça em despedida? Pois assim foi, doutor, e espero e peço a Deus que o senhor nunca venha a saber. A minha vida desabou, só não foi pior porque eu tinha que segurar as pontas dentro de casa. Mas eu chorava igual criança de casa ao trabalho e do trabalho a casa. Foi muito difícil, doutor, para todos nós. Mas eu reagi mal!

Ah, doutor, reagi mal porque eu não consegui ficar firme, não consegui continuar sendo mourão, sabe? Eu tinha que me manter sobre mim para que pudessem se apoiar em mim, mas não consegui ser assim!

Sim, doutor, eu sei, mas o senhor sabe que nessas horas as pessoas esperam isso das outras e se a gente falhar, a culpa vem a galope. Não tem jeito, fraquejou, ficou sozinho. Não adianta, essa é a verdade. Enquanto estamos bem, todos estão sorrindo ao nosso lado, agora, balançou todos correm e apontam os dedos.

É...

Mas nem foi esse o grande problema, sabe? O problema grande é que eu caí na bebida. Eu bebia vez ou outra. Saia com os amigos depois do trabalho para tomar uma cerveja uma vez por semana ou a cada quinze dias. Mas eu passei a beber quase todas as noites. Um traguinho aqui, outro ali, mas toda noite. Foi a forma que eu arrumei de aliviar a pressão. Nem sei dizer para o senhor de onde foi que eu tirei isso como solução, só sei que foi.

O menino ficou bem, doutor, lhe digo isso para se assossegar na conversa. Demorou mais uns trinta dias, creio eu, e ele já foi pra casa e terminou de se cuidar. Mas durante o período em que ele ainda estava no hospital veio a notícia que me derrubou ainda mais: perdi meu emprego! Aí a coisa danou-se mesmo. O senhor sabe, eu já estava ficando velho e a era mais barato contratar a molecada para ficar no meu lugar do que me manter. Então, na primeira chance que tiveram, me cortaram e contrataram dois meninos. Digo para o senhor que fiquei contente por eles, mas pra mim foi a ruína. Dediquei-me tanto àquela empresa, tantos anos, tantas noites, tantos nervosismos e na primeira chance que tiveram, meteram o pé na minha bunda, mesmo sabendo da situação do menino!

Mas eu já estava chegado na bebida e com o menino doente, a coisa só veio a piorar. Eu passei de tomar uns tragos a noite para derrubar garrafas inteiras. Eu passei de tomar meus refrigerantes na hora do almoço para ser acompanhado de garrafas �" isso mesmo, mais de uma. Eu não saía atrás de emprego e não fazia mais nada a não ser beber. Não conseguia reagir, doutor. Enfim, minha mulher �" ex-mulher, né? �"me deu um ultimato, porque, coitadinha, só passava nervoso comigo, passava vergonha, ficava sob a pressão da família dela e nem me tinha mais como homem dentro de casa. Há um período de uns oito ou dez meses da minha vida que não me lembro direito. É um vazio que nem faço ideia do que realmente aconteceu, apenas alguns lances de memória, ou coisas que alguns amigos me contaram ou minha ex-mulher jogou na minha cara. A verdade é que eu nem sabia mais quem eu era �" e acho que nem queria saber �" e acabei danando a vida de todo mundo, inclusive da minha família.

Estes meses foram o que minha esposa �" eita, ex-esposa �" mais sofreu. Depois ela me botou para fora de casa no dia em que cheguei tão bêbado que bati na minha menina porque tinha um namorado na porta esperando por ela. Isso sim me dá muita vergonha e raiva de mim mesmo, doutor, mas é a pura verdade. Eu nunca faria isso a ninguém, como nunca havia feito, e fui fazer justo à minha menina! A mãe dela que teve de despachar o rapaz porque minha menina estava inchada demais para fazer isso.

O divórcio veio rápido e nem precisou ser litigioso. Eu sabia que estava errado. Eu estava vendendo as coisas de casa para manter o ébrio, o senhor acredita? Isso é muito sério, e tanto foi que me botaram para fora de casa, com uma mão na frente e outra atrás, aliás, nada mais justo porque já vinha perdendo quase tudo. E não bastou apenas ir para a rua, doutor, fui para rua sob xingamentos e promessas de nunca mais me verem... E isso têm se cumprido muito bem...

Eu cheguei àquele estágio em que tinha tremedeira pela manhã, doutor, que só passava com dois largos tragos, dois! Fui ao fundo do posso e me puseram para fora de casa. Ela foi embora com as crianças para a família dela, pelo menos foi isso que me disseram.

Não, doutor, nunca mais os vi ou soube deles. Eu fui para casa de um amigo, mas logo me tornei um estorvo e tive de sair. Eu até disse que tinha um dinheiro para me manter, mas foi mentira para confortar meu amigo. A esposa dele não estava mais me aguentando também. Não tinha nada, nem para o próximo trago. Dormi uma, depois duas e então na terceira noite na rua entendi realmente o que tinha acontecido. Mas já na segunda noite eu senti de verdade a falta da bebida em mim.

É sim, doutor, desde então eu moro na rua. E quer saber, tem sido bom!

Como? Ah, doutor, foi o único jeito de eu não ter bebida! Claro que fiz umas coisas muito feias para conseguir uns tragos, mas a miséria curou minha abstinência. Terrível, doutor, a gente fica num estado espantoso. Isso durou algumas semanas e não foi fácil. Cheguei a revirar lixo em procura de alguma garrafa com um pouco de bebida. Lambi muita boca de garrafa jogada, tentando sugar uma última gota. Hoje, quando me lembro disso tudo, ainda fico espantado com a situação que um vício deste nos causa. Terrível mesmo, doutor. Mas foi na marra mesmo, e como foi difícil, mas larguei a maldita.

Fácil não, doutor! Nada fácil! Mas é a vida... Prefiro que eles todos estejam bem longe de mim. Estou pagando meu preço. Hoje, penso e imagino, eles estão melhores do que comigo. Devem estar felizes e tocando a vida. Fico imaginando a mulher que ela se tornou e homem em que ele se fez!

Mas é claro que sim, doutor! Depois de tudo de ruim que causei pra eles o senhor queria o quê? Tenho de pagar por tudo que fiz e também pelo que deixei de fazer. O senhor sabe o que é uma filha dizer que tem vergonha do senhor e convidar seu cunhado como padrinho da formatura que o senhor nunca foi, mas quase tudo pagou? O senhor sabe o que é ver seu filho feliz de ter jogado bola com seu provável-futuro-padrasto, como se você nunca tivesse existido, porque você está de ressaca no quarto do fundo? O senhor sabe o que é ver a mulher da sua vida, aquela moça linda pela qual o senhor se apaixonou e se entregou, lhe rebaixando ao pior dos vermes doentes?

 

Droga? Não, doutor, por incrível que pareça nunca nem experimentei. E olha que chances não me faltaram. Aqui na rua é muito fácil ter droga em torno da gente. Sempre tem um oferecendo, e sempre tem gente se pegando por um bocado que seja. Mas como falei, sempre tive oportunidade e nem sei ao certo porque não entrei nessa também. Digo isso por causa do período que caí na rua, estava bem fácil eu entrar nas drogas do jeito que eu estava. Mas depois que larguei a bebida, nada mais disso podia me afetar. Aqui, o uso da droga não começa só porque o colega começa ou porque está na moda, como dizem por aí, mas começa por falta de conhecimento, começa por fome, por frio e também por dor, doutor. Não pela dor física de um machucado, mas pela dor do coração entristecido, abandonado e desesperançoso, e acho que este é o maior dos motivos. Por isso que digo ao senhor que nem sei porque eu não entrei nas drogas, eu tinha tudo para entrar, tudo. Aliás, doutor, eu sei sim, eu sei por quê: porque Deus quis assim, preferiu me proteger tirando qualquer vontade ou tentação que pudesse cair sobre mim. Deus é bom demais, doutor, mesmo para mim que merecia também ter caído nas drogas para cumprir com minhas falhas.

 

Não, doutor, não os culpo, em momento algum, pelo contrário, rezo pelo bem deles! Quero, de todo o coração que estejam bem.

Eu? Estou pagando minha penitência, o preço por ter fraquejado, por não ter aguentado o tranco! E por isso sempre digo ao senhor o quão feliz eu sou por acordar cada dia que acordo. Eu fiz bobagens e agora tenho de pagar, é a única forma de o Senhor me aceitar como seu filho em seu reino. Por isso não reclamo e apenas espero minha hora, doutor! Não há uma esperança, e sim pagamento! E nesta situação toda, o senhor acredita que sou feliz? Pois sou!

Eita, doutor! Vou parar com essa conversa, o senhor está emocionando! E pode ficar despreocupado, porque vivo o que tenho que viver. Todos nós, cada um de nós, vive o que tem que viver, por culpa de seus atos, ou de seus silêncios ou de suas injustiças. Mas nesta terra se faz e nesta mesma terra se paga, o que se leva para o julgamento superior é um pouco mais sério!

Agora vejo essa menininha fazendo seu xixizinho num balde ao céu aberto, lembro da minha menininha e vejo o quanto se passou, fico pensando que estou há quase dez anos nesta vida e ainda não enlouqueci, por mais que eu reze por isso. Isso corta o coração e me traz todas estas lembranças do que já fui um dia... Para falar a verdade, doutor, tem horas que nem sei mais quem sou...

 

Bom, doutor, vamos parar com esta conversa e vamos tocar o dia. É um lindo domingo e o senhor deve passar com a família e não comigo. Os franguinhos do seu Mané já estão quase no jeito e um deles será o nosso banquete, o senhor não tem com o que se preocupar; pelo contrário, esqueça tudo o que falei e vá pra casa dar um beijo na patroa e nas crianças.

Isso, doutor, vá sim!

Tenha um bom dia o senhor também! E nunca se esqueça, o dia em que o senhor cair, ninguém estará ao seu lado para lhe estender a mão. Então, não caia!

Passar bem, doutor! Até mais ver!




© 2015 Rafael Castellar das Neves


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Added on December 4, 2015
Last Updated on December 4, 2015


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Rafael Castellar das Neves
Rafael Castellar das Neves

Sao Paulo, Sudeste, Brazil



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Nascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de cr&oc.. more..

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